Diferentemente da versão tradicional, o cigarro eletrônico não precisa de combustão para funcionar e não gera o odor característico que circunda os fumantes. E isso pode levar a uma falsa percepção de segurança desses aparelhos, mas o que poderiam ser considerados benefícios em relação ao cigarro tradicional não encontram respaldo na comunidade científica.
Cada vez mais, os estudos têm demonstrado os riscos associados ao uso dos dispositivos eletrônicos para fumar (também chamados de vapes), especialmente para a saúde cardiovascular. Publicada no periódico científico Circulation no fim de 2019, uma pesquisa observou que, dos 476 adultos saudáveis analisados, os adeptos do cigarro eletrônico apresentavam taxas mais altas do colesterol LDL – considerado “ruim” –, em comparação com os não fumantes. Nos indivíduos que fumavam tanto o cigarro tradicional quanto o eletrônico, o nível do colesterol considerado “bom”, HDL, era mais baixo. As informações são da Agência Einstein.
Outra pesquisa divulgada no mesmo periódico analisou o fluxo sanguíneo no coração dos fumantes de cigarro comum e do eletrônico, em dois momentos: em descanso e após fazer exercícios com a mão, com o uso de aparelhos com molas (hand grip, na sigla em inglês). Nos adeptos do cigarro tradicional, o fluxo sanguíneo aumentou modestamente depois de fumar e diminuiu após os exercícios. Já entre os usuários do cigarro eletrônico, foi registrada uma redução tanto depois da inalação quanto dos exercícios, indicando um desempenho negativo da circulação sanguínea.
Mais recentemente, a Associação Norte-americana do Coração compartilhou os resultados de um estudo pré-clínico, conduzido em camundongos, que alerta para prejuízos no funcionamento dos vasos sanguíneos após o uso desses dispositivos. Os danos seriam semelhantes aos causados pelo cigarro tradicional. “Uma única sessão de exposição ao aerossol de vários sistemas eletrônicos de entrega de nicotina (ENDS, na sigla em inglês), incluindo múltiplos tipos de cigarros eletrônicos, produto de tabaco aquecido e dispositivo de vaporização ultrassônica, todos lesionaram a função vascular endotelial comparável aos cigarros por combustão”, destacam os autores na conclusão.
Perigos no vapor
Os aparelhos eletrônicos para fumar podem não produzir uma fumaça ao serem usados, mas formam um vapor ou aerossol, que é inalado pelo usuário e por quem está perto. Nesse vapor estão substâncias como o propilenoglicol e a glicerina vegetal que, quando submetidas a altas temperaturas, formam acetaldeído, formaldeído e acroleína – tóxicas e cancerígenas.
Mesmo os aditivos aromatizantes, que geram os “sabores”, podem elevar o risco de problemas, de acordo com Jaqueline Ribeiro Scholz, cardiologista e diretora do programa ambulatorial de tratamento do tabagismo do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP. A especialista cita um trabalho in vitro (feito em laboratório) que demonstrou que o líquido usado no cigarro eletrônico com o aroma de canela apresentava um efeito trombótico maior do que os outros aromatizantes. “Os próprios aditivos de aroma e sabor podem contribuir também com a nicotina para as disfunções e consequentemente para o aumento no risco de eventos cardiovasculares agudos”, destaca.
Não tem menos riscos
Segundo a especialista, trocar o cigarro tradicional pelo eletrônico não modifica os riscos inflamatórios, de formação de coágulos e trombos e de arritmia associados ao ato de fumar. “Esse efeito tem muita relação com a nicotina, que causa dependência, aumenta a atividade inflamatória e o risco de arritmias cardíacas. O cigarro eletrônico atual tem alta carga de nicotina, às vezes até mais que o cigarro comum, porque o indivíduo tende a usar mais vezes”, explica.
Scholz lembra o caso de uma paciente, tratada por ela em 2018 para largar o cigarro, e que voltou a fumar durante a pandemia da Covid-19. “Ela experimentou os pods [versão dos cigarros eletrônicos que trazem a nicotina sob formato de sal, oferecida ao cérebro em altas concentrações] e fuma hoje mais do que antes, porque não tem uma restrição social. Ela leva [o dispositivo] para o quarto, academia, praia. Ficou refém disso”, exemplifica.
Danos a curto e longo prazo
Em termos fisiológicos, o fisioterapeuta Frank Silva Bezerra, mestre e doutor em Ciências Morfológicas, explica que o uso do cigarro eletrônico leva a um fluxo de células inflamatórias para o pulmão que geram a hipoxemia (baixo nível de oxigênio) do tecido e o estresse oxidativo, condição na qual o nível de produção de antioxidantes pelo nosso organismo é insuficiente para neutralizar substâncias que provocam danos às células, conhecidas como radicais livres.
Ainda, as substâncias que compõem o dispositivo podem quebrar a barreira endotelial dos vasos sanguíneos e entrar na corrente sanguínea. “A nicotina entra no sistema circulatório, mas também esses outros compostos tóxicos, e isso desencadeia um processo inflamatório a nível sistêmico, para os vasos e coração”, explica o especialista, que atua no departamento de Ciências Biológicas do Núcleo de Pesquisas em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Os danos ao sistema cardiovascular, segundo Bezerra, podem surgir após uma única experiência, e também com o uso crônico.
“Uma simples baforada ou a primeira vez que tem contato traz efeitos imediatos. Altera, por exemplo, a frequência cardíaca, a pressão arterial e, mais recentemente, em 2021, saíram estudos clínicos mostrando que causa um efeito de disfunção endotelial que pode provocar, a médio e longo prazo, as placas ateromatosas [placas de gordura na parede da artéria] e a liberação de mediadores inflamatórios na corrente sanguínea”, destaca.